As mudanças demográficas ocorridas nas últimas três décadas, observadas pela análise da composição das famílias brasileiras, contribuíram para o aumento da renda domiciliar per capita da população do país. A constatação é da dissertação de mestrado da economista Camila Strobl Sakamoto, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, sob a orientação do professor Alexandre Gori Maia. Segundo o estudo, nas áreas urbanas a elevação da renda total das famílias foi de 38% entre 1981 e 2011, enquanto nas áreas rurais a ampliação foi de 95,2% no mesmo período. Entre os fatores que concorreram para a melhora da renda per capita estão a maior participação de casais sem filhos e de pessoas que vivem sozinhas e a queda participativa de casais com filhos pequenos nos arranjos familiares.
De acordo com Camila, o fato de a renda do brasileiro ter crescido no período considerado não é uma novidade, visto que essa progressão vem sendo constatada pelos indicadores econômicos disponíveis. Tal avanço, diz a economista, é consequência de uma série de fatores, entre os quais o contexto macroeconômico favorável, a ampliação das políticas sociais de transferência de renda e as mudanças demográficas. Este último aspecto, afirma a autora da dissertação, não tem sido muito considerado no Brasil nesse tipo de análise. “É por isso que decidi dedicar meu trabalho ao tema, uma vez que o país passou por importantes transformações no plano demográfico ao longo dos últimos 30 anos”, explica.
Essas mudanças, acrescenta Camila, vão além da queda da taxa de fecundidade, elemento mais comumente analisado em variados estudos. “Outro ponto importante a ser levado em conta são as mudanças que ocorrem no interior das famílias. É interessante investigar as mudanças na organização dos arranjos familiares da população que interferem nas condições de obtenção e de distribuição da renda de um determinando domicílio. Vale lembrar que, ao deixar de sustentar um filho, que se torna independente, uma família tem a sua renda impactada de forma positiva, o que pode fazer com que ela eventualmente deixe um determinado estrato socioeconômico e migre para outro, superior”, detalha a economista.
A pesquisadora baseou o seu estudo nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Conforme a PNAD, entre 1981 e 2011 a participação de pessoas morando sozinhas na área urbana aumentou de 0,7% para 2% entre os homens e de 0,8% para 2,3% entre as mulheres. Ademais, o número de casais sem filhos cresceu tanto numa área quanto na outra, passando, respectivamente, de 4,2% para 9,4% e de 3% para 9,9%. “A partir da metodologia utilizada pelo estudo, inferiu-se que as mudanças participativas dos diferentes tipos familiares dentro da população urbana contribuíram com um aumento de R$ 57 na renda per capita, enquanto que na área rural esse aumento foi de R$ 30”, informa Camila.
A autora da dissertação observa que, se serviram para ampliar a renda per capita, as mudanças ocorridas no interior das famílias também contribuíram para um aumento da desigualdade entre os meios urbano e rural. Isso se explica, conforme a economista, porque as transformações demográficas foram mais pronunciadas no primeiro âmbito que no segundo. Ademais, os tipos familiares que experimentaram aumento da sua participação estão associados a maiores níveis de renda no urbano que no rural. “Na área urbana, a renda domiciliar per capita era, em 2011, de R$ 828. Já na área rural esse valor era de R$ 350”, compara. Camila frisa que apesar de as mudanças na composição familiar terem gerado um efeito regressivo sobre a distribuição de renda rural-urbana, que continua visivelmente muito desigual, houve redução considerável das disparidades de renda entre essas áreas ao longo das últimas três décadas.
Em sua pesquisa, a economista investigou, ainda, os impactos das mudanças demográficas sobre cada extrato de renda. Ela apurou que, também nesse aspecto da análise dos efeitos das mudanças na composição familiar, os benefícios não foram distribuídos de maneira igualitária entre as camadas mais ricas e mais pobres da população. Ou seja, os 10% mais ricos tiveram a renda ampliada, enquanto a renda dos 40% mais pobres não apresentou a mesma dinâmica.
A explicação está, mais uma vez, na intensidade com que as mudanças demográficas aconteceram dentro de cada estrato. “No geral, as alterações que mais impactaram positivamente a renda foram registradas justamente nas camadas mais elevadas, como a expansão dos casais sem filhos. Já as que impactaram negativamente a renda per capita foram mais pronunciadas entre as camadas mais pobres, como o aumento do número de mulheres que sustentam sozinhas seus domicílios”, pormenoriza Camila.
Esse impacto negativo sobre o estrato mais pobre da população, observa a autora da dissertação, não significa que apenas os mais ricos estão se beneficiando dessas mudanças. O estudo levanta a hipótese de que estaria ocorrendo uma mobilidade intergeracional das famílias brasileiras. “Devido ao elevado ganho trazido pelas próprias mudanças na estrutura familiar, muitas famílias que estavam situadas nas camadas inferiores da escala socioeconômica experimentaram uma mobilidade, migrando para estratos superiores”, reforça.
Na análise da evolução da renda domiciliar per capita, especificamente nas áreas rurais, foi registrado um aumento interno das desigualdades, ocasionado principalmente pelo rendimento do trabalho e pelo valor das aposentadorias. Os dois fatores apresentaram maior valorização entre os estratos mais elevados de renda. A disparidade somente não foi maior, conforme a autora da dissertação, porque as famílias situadas nos estratos mais pobres foram beneficiadas por outras fontes de renda, como o Bolsa-Família. “Ademais, esse tipo de fonte de renda teve papel essencial para a redução da vulnerabilidade econômica de determinados tipos de arranjos, principalmente os que contavam com a presença de filhos pequenos no domicílio”, diz a economista.
A economista faz questão de assinalar que esse aumento das assimetrias entre os mais pobres e os mais ricos não significa que a pobreza cresceu no campo. “Não há necessariamente uma relação de causa e efeito nesse caso. Ao contrário, a renda dos mais pobres tem melhorado no rural nos últimos anos, por causa, como já mencionado, do desempenho favorável da economia e da ampliação dos programas assistencialistas”. Já nas áreas urbanas, ocorreu uma redução interna das desigualdades, provocada principalmente por causa da evolução mais acelerada do rendimento do trabalho nos estratos mais pobres. “Vale lembrar que, nas duas áreas [urbana e principalmente rural], as aposentadorias impactaram com menor intensidade as famílias do estrato mais pobre. Isso porque é justamente o elevado valor das aposentadorias que explica a maior propensão de famílias que contam com esse benefício em se situarem nos estratos mais elevados da renda. Mesmo assim, a sua importância não pode ser descartada entre a população mais pobre, visto que as aposentadorias contribuíram para aumentar a renda de todos os estratos”, assinala a pesquisadora.
Os dados revelados pela pesquisa, reafirma Camila, apontam para a importância dos estudos que relacionam as mudanças demográficas aos impactos socioeconômicos, algo que somente em épocas recentes tem sido feito de maneira mais detalhada no Brasil. “A análise das características demográficas através da unidade familiar é extremamente relevante, uma vez que a aplicação desse corte de análise facilita a avaliação dessas mudanças, englobando ao mesmo tempo a queda da fecundidade brasileira e o envelhecimento populacional, além de outras mudanças contextuais que igualmente alteram os padrões de organização das famílias”, considera a autora da dissertação, que contou com bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão vinculado ao Ministério da Educação.