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Por Davi Carvalho

 

A tese de doutorado defendida por Wagner Madeira da Silva no Instituto de Economia da Unicamp, sob orientação do professor Célio Hiratuka, lança luz sobre um paradoxo contemporâneo da economia política da tecnologia: o domínio das Big Techs sobre a Inteligência Artificial pode, ao menos em um primeiro momento, representar um cenário menos nocivo aos trabalhadores do que alternativas mais descentralizadas e abertas. Com o título “Inteligência Artificial: Impactos Econômicos e Estratégias das Corporações na Aurora da Sexta Revolução Tecnológica”, o trabalho investiga os desdobramentos econômicos e institucionais da nova era inaugurada em 2012 — marco simbólico da chamada Sexta Revolução Tecnológica, quando a AlexNet venceu uma competição de visão computacional, inaugurando a era da Cognição Sintética como insumo produtivo central.

 

A análise parte de uma releitura da história da IA, dividida entre duas grandes trajetórias tecnológicas. Por mais de meio século, prevaleceu a chamada Trajetória da Mente, baseada em lógica simbólica e raciocínio estruturado. A partir da década de 2010, contudo, consolida-se a Trajetória do Cérebro, ancorada em redes neurais profundas e aprendizado de máquina. Essa nova abordagem, viabilizada pelo avanço de tecnologias complementares — como semicondutores, big data e conectividade massiva —, se tornaria a base da inteligência artificial contemporânea, marcada por capacidades emergentes, imprevisíveis até mesmo para seus criadores.

 

É justamente essa natureza emergente, combinada à escala colossal dos investimentos requeridos, que molda o ambiente competitivo da nova era. A imprevisibilidade das funcionalidades dos modelos de IA obriga as corporações a adotarem posturas defensivas, alocando recursos bilionários em desenvolvimento próprio, compra de startups e infraestrutura. O mercado se transforma numa corrida armamentista movida, não apenas pela ambição de liderar, mas pelo temor de desaparecer.

 

Cada gigante da tecnologia, contudo, escolheu um caminho. Google, Microsoft e Amazon operam como intermediários da Cognição Sintética, oferecendo acesso a modelos próprios e de terceiros a partir de suas plataformas de computação em nuvem. A Apple busca replicar no domínio da IA seu modelo de “jardim murado” — mantendo controle sobre hardware, aplicativos e serviços, e assim condicionando o acesso à tecnologia à substituição de dispositivos. A Meta, por sua vez, adota uma estratégia singular. Com investimentos massivos em ativos (hardware), constrói a infraestrutura para uso próprio, já que não atua no mercado de computação em nuvem e por isso não tem como competir na distribuição Cognição Sintética, como fazem Amazon, Microsoft e Google. 

 

O estudo mostra que, apesar das diferenças táticas, essas empresas operam sob uma lógica comum de concentração de poder e rentabilidade. Mas essa concentração, argumenta Madeira, não se traduz automaticamente em prejuízo para a classe trabalhadora. Utilizando um modelo analítico que distingue a IA de outras tecnologias industriais, a tese estima que a difusão da Cognição Sintética na economia tenderá a reduzir salários e emprego, comprimindo a parcela da renda apropriada pelos trabalhadores. A novidade, no entanto, está no fato de que trabalhadores menos qualificados poderiam acessar tarefas mais complexas, o que talvez compensasse parcialmente as perdas. Já os mais qualificados teriam, pela primeira vez, seu espaço ameaçado por uma tecnologia de substituição.

 

“Esforços para aumentar a competição no provimento de Cognição Sintética não beneficiarão os trabalhadores, ao menos em um primeiro momento”, afirma o autor. Em sua avaliação, medidas com aparência progressista — como o fomento ao desenvolvimento de modelos abertos ou a promoção de maior competição — podem ter efeitos ambíguos ou até mesmo perversos. “Iniciativas meritórias como impulsionar o desenvolvimento e difusão de modelos abertos e livres de Inteligência Artificial [...] poderiam ter efeitos cruéis sobre emprego e distribuição de renda”, escreve na tese.

 

Essa reflexão se apoia em uma comparação histórica. “Mencionamos o caso da inovação em agricultura onde os principais stakeholders, os próprios agricultores, não se apropriam dos ganhos de produtividade decorrentes do avanço técnico”, lembra Madeira. “Enxergando a Economia como um sistema, diríamos que o efeito de uma ação sobre a produção só pode ser determinado se soubermos como é o ‘fechamento’ do sistema pelo lado do consumo.” No caso da IA, o desfecho permanece em aberto, mas a tese alerta para o risco de que os ganhos de produtividade sejam apropriados por atores que não são os trabalhadores — mesmo quando a tecnologia é promovida sob a bandeira da democratização.

 

Mais do que questionar o protagonismo das grandes empresas, o estudo indica que intervenções eficazes talvez estejam em outras áreas do sistema. “As ações devem mirar, não na concorrência entre os provedores de Cognição Sintética, particularmente as Big Techs, mas em outros ramos do sistema”, defende Madeira. “Políticas de Educação e distribuição de renda poderiam eventualmente amenizar as consequências sociais da turbulência que caracteriza o início de uma Revolução Tecnológica.”

 

A turbulência, nesse sentido, é produto do choque entre uma onda tecnológica avassaladora e o arcabouço institucional e cultural que resiste à sua incorporação. Como o avanço técnico não pode ser detido, a superação dos seus efeitos mais desiguais dependeria de reformas institucionais e socioculturais profundas — possivelmente fora do escopo tradicional das ações econômicas. “Eventual calmaria e prosperidade compartilhada dependeria de mudanças institucionais e socioculturais, eventualmente fora do escopo usual das ações econômicas”, afirma. “Possivelmente afetando a relação atual entre remuneração e trabalho, o papel central deste na sociedade e talvez até o do ser humano no universo.”

 

Ao mesmo tempo, a tese também contribui para o entendimento das decisões estratégicas das corporações no presente. A partir do momento em que a Trajetória do Cérebro se estabelece como dominante, as empresas baseadas na lógica anterior tendem a desaparecer. E é justamente a combinação entre escala e emergência — duas propriedades centrais dessa nova trajetória — que determina a forma como essas empresas agem. “A escala inédita dos investimentos necessários é acessível a poucos, praticamente só às Big Techs”, observa Madeira. “Por serem emergentes, as capacidades dos grandes modelos de Inteligência Artificial, em que pese sua importância econômica, são imprevisíveis.” A partir dessas duas características, forma-se um campo de ação estratégica em que o medo da obsolescência impulsiona decisões bilionárias, fusões inesperadas e estruturas de mercado altamente concentradas.

 

“Todas embarcaram na corrida armamentista dos investimentos bilionários, principalmente pelo medo de ver seus modelos de negócios inviabilizados”, resume o autor. Enquanto Google, Amazon e Microsoft se posicionam como intermediários de Cognição Sintética, a Apple tenta controlar o acesso via hardware. Já a Meta, segundo Madeira, “mina a rentabilidade [das rivais] no provimento de Cognição Sintética ao tornar seus modelos open-source” — estratégia que simultaneamente fortalece sua publicidade digital e desafia o modelo de negócios das concorrentes.

 

Na interseção entre teoria econômica, história tecnológica e análise de estratégia empresarial, a tese de Wagner Madeira oferece uma contribuição original e incômoda. Original porque constrói um modelo que trata a IA como fenômeno de Cognição Sintética — diferente de outras tecnologias industriais ou digitais — e analisa suas consequências com base empírica e estrutura teórica clara. Incômoda porque desafia a narrativa dominante de que mais abertura e mais competição são sempre sinônimo de bem-estar. Ao revelar que o sucesso das grandes corporações pode, em certos contextos, representar a menor das dores possíveis para os trabalhadores, o autor recoloca a questão essencial da política econômica em tempos de disrupção: quem deve ser o alvo da intervenção pública? A tecnologia ou as estruturas sociais e institucionais que a recebem?

 

Em vez de celebrar ou temer a Inteligência Artificial em termos absolutos, a proposta é entender como ela reconfigura o jogo, quem se beneficia, quem perde — e, sobretudo, o que fazer com isso. Um convite à lucidez em meio à vertigem.